Raquel é amiga de Marcelo. Ela tem 6 anos, ele 3. Num
passeio em um antigo campo de futebol do Centro Social Urbano, em Moreno, onde
hoje tem uma ´invasão´, eles se encontraram e, desde então, mantém uma
amizade.'Amigos de Infância' diriam uns. 'Amigos do acaso' diriam outros. Amigos por que decidimos atender Marcelo nos seus pedidos de brincar com Raquel.
Todas as implicâncias comuns a um típico garoto de classe média urbano
são postas de lado por Marcelo quando ele esta na casa de Raquel. Anda descalços
no mato, se molha e não pede para trocar de roupa, se meleca e não se limpa, sem frescura para nenhum biscoito oferecido.
Graças à Raquel e à invasão no CSU.
Raquel tem uma amiga, também de 3 anos, sua vizinha
Nicole. Uma negra linda e bastante geniosa. Segura firme na caneta e escreve.
Curvas que só os adultos não compreendem. Mas as curvas eram lindas e eu não
cansava de elogiar.
A mãe de Raquel percebeu meu encantamento e conversava
animadamente comigo sobre o quanto as crianças eram espertas e danadas. E aí me
fez uma pergunta que não esperava resposta:
- Como se tem coragem de judiar
de uma criança?
Eu só balancei a cabeça, como quem compreende a pergunta,
mas não compreende a resposta.
As crianças continuavam correndo entre arames farpados,
muros e córregos. Uma diversão que não se encontra fácil. Aí a mãe de Raquel me
relata o caso da semana.
- Nicole estuda no João de Deus!
Automaticamente me transportei para lá. É uma escola privada, era segunda maior
do município, não sei sua posição hoje. Ela continuou:
- A mãe de Nicole foi pegar ela na quarta -feira passada. Nicole estava brincando
junto com outras crianças. Depois ela se afastou das crianças e ficou brincando
sozinha.
Eu fiquei pensando no encantamento da mãe olhando aquela cena. A mãe de Raquel continuou.
- Aí chega outra mãe e fica do lado da mãe de Nicole. E essa mãe olhou para as crianças e também admirava a brincadeira. Tanto que falou: 'olha
quantas crianças brincando!' e depois olhou para Nicole e falou 'Olha que
urubuzinho'!
Minha sobrancelha enrijeceu. Automaticamente falei:
- Eu batia nela!
A mãe de Raquel concordou e disse:
- Num foi
isso mesmo! Tiveram que chamar o segurança da escola para apartar!
Ainda chocada,
balancei a cabeça como quem concorda e sabe a resposta certa.
As crianças continuavam brincando, leves como a vida
deveria ser. E aí a mãe de Raquel fez mais uma pergunta que me colocou do
tamanho que sou.
- Como pode? Nessa idade e já estão judiando dela!
Minha reação foi a óbvia. Espanto de concordância. Mas
esta ultima frase ficou martelando... "Nessa idade e já estão judiando dela!"
É preciso deixar claro que não havia distancia econômica
ou social entre as mães na escola. Tanto que as crianças estudavam na mesma escola. Mas já estavam
judiando dela. Já.
Esse é um advérbio engraçado. Denota pressa, "logo logo chego. Já
já chego." Já estão judiando dela. O preconceito teve pressa. Chegou aos 3 anos, dentro dos muros da escola. Mas o pior não foi a pressa do
preconceito, mas a constatação de que ele, um dia, chegaria. E só tornou-se
problema por que chegou logo. Já estão judiando Nicole.
Pois é... o ser humano tem "pressa" de cada coisa...
ResponderExcluirMuito bom, Ju!