domingo, 21 de junho de 2015

Digitais

Era um dia ordinário. Havia separado parte da manhã para reemitir meu RG - agora com foto atualizada - requisito para expedição final do diploma de mestrado, há 4 anos preso nos tentáculos do castelo da UFPE.

Primeiro de tudo, encaminho-me ao estúdio para foto 3 x 4. Intimamente estou rachando de rir com as poses estáticas à frente da câmera. A expressão das pessoas é um misto entre sair bem na foto e a vergonha por compartilhar publicamente esse sentimento.

Chegou minha vez e não foi diferente. A confusão de sentimentos só me fez ter mais vontade de sorrir... quase explodi na primeira tentativa e o retratista aguardou que eu me recompusesse para nova tentativa, sem qualquer pergunta que revesse se aquela era minha intensão.

Na segunda tentativa ele se aproximou com a câmera em punho.

- Ficou boa? Perguntou-me.

- Sim, é o que tem para hoje! Respondi. Era o jeito de dizer que não ligava.

Foto em mãos, comprovante de pagamento anexo (feito 3 dias antes), busquei e encontrei o posto de atendimento da Secretaria de Administração, responsável pela emissão do documento.

Como não faço parte de nenhum grupo especial da sociedade, assisti vários colegas passando na minha frente e saindo 5 minutos depois.

"É rápido", pensei silenciosa. E de fato era. Rapidamente fui chamada e me postei à frente do meu atendente, ainda por trás de um computador.

- Preencha a ficha, por favor!

Obedeci. Assinei, Entreguei. Esperei próxima orientação, que veio logo na sequência de uma breve conferência no formulário.

- Me acompanhe, por favor!

Sempre acho engraçado como a ênclise é uma regra que não pegou.

Já tinha percebido que todos os cidadãos saíam com os dedos pintados de azul. Estava pronta para a meladeira.

O servidor, com um pequeno rolo de tinta azul em mãos, pintou as pontas dos meus dedos. Era um movimento suave, apressado e vigoroso. Não deixei de pensar por que a biometria eletrônica saiu primeiro para cadastrar eleitores e não para cadastrar cidadãos. Minha resposta mental causou-me enjôo.

Fugi do pensamento. Meu dedo estava em riste, uma precaução vaidosa de não sujar minha roupa. Enquanto isso, meu amigo servidor (ou seria terceirizado?) buscou uma ficha em mãos... aquela mesma que havia preenchido dois minutos antes.

Linhas retas compunham 10 elementos vasados para 10 dedos e suas distintas digitais.

O servidor tomou minhas mãos e guiou meus dedos até os elementos vasados. Pintei, de forma guiada, as 10 casas da ficha.

Para meu espanto, o servidor pediu para o aguardar e levou minha ficha até uma sala à parte. Na hora saquei que era um "controle de qualidade". Aguardei os minutos observando o movimento da sala.

- Por isso é tão rápido! Falei baixo.

Eram mais de 20 servidores na sala. Cada um com um cidadão à frente.

Chamou minha atenção um jovem pai que segurava seu filho no colo. Ele devia ter seus 19 ou 20 anos. O bebê, recém-nascido, bem flácido, tinha os olhos marcantes. Por um segundo pensei: "Onde estaria a mãe dessa criança?" No segundo seguinte lamentei, com um suspiro, meu machismo.

Depois observei o supervisor do serviço. Cargo que postulei ao servidor com vestimentas distintas. Enquanto os demais trajavam blusa de malha e jeans, este senhor magro, negro e de cabelo muito bem cortado, vestia terno, gravata, cinto e sapato social (combinando um com o outro). 

Ele olhava, junto comigo, todo o movimento da sala. E ia de lá para cá, orientando, observando as digitais impressas, guiando dedos e ajudando os servidores.

Não parecia atarefado; claramente buscava algo para fazer. Um supervisor clássico.

Meu servidor voltava da sala de controle de qualidade com uma nova ficha em mãos. Ops! Algo tinha dado errado! Mais tinta no dedo, mais casinhas pintadas, mais uma revisão de qualidade e mais uma ficha em branco. Dessa vez nas mãos de uma pessoa do controle de qualidade.

Ela solicitou a outro servidor que me atendesse e deixou meu primeiro atendente dando continuidade ao serviço daquele.

O novo atendente me orientou a tirar o excesso de tinta nos dedos com papel toalha e pintou meus dedos com tinta fresca, e lá vai meus dedos guiados às casinhas de papel...

Neste momento o Supervisor ancora ao lado do meu novo atendente, toma o formulário em mãos e após analisá-lo, como quem fala para consolar um erro não cometido, fala:

- Ela tem as digitais finas!

Com desânimo de quem não errou, mas vai ter que consertar o erro mesmo assim, o atendente concorda. O supervisor pesca no bolso do paletó suas luvas de látex, veste-as de forma habilidosa e vai pegar novas fichas.

Neste ponto eu estava irritada como quem descobre uma verdade infeliz. Eu tinha as digitais finas! DIGITAIS FINAS! F-I-N-A-S. Seria uma condição genética? Uma mutação? Ou apenas azar? A frase martelava em minha cabeça enquanto o supervisor voltava com três novos formulários em mãos... três! 

Papel toalha, nova camada de tinta e o supervisor, com meus dedos nas suas mãos, solicitou que eu relaxasse os ombros, respirasse lentamente e soltasse o punho, as mãos, os dedos e suas pontas. Não sabia que tinham tantos pontos de tensão entre o punho e minhas digitais (finas).

Fui capaz de tudo isso. E o supervisor apostou alto. A delicadeza que outrora regia o movimento de pressão nos meus dedos foi trocada bruscamente por um esmagamento de minhas 10 falanges. Punição merecida apenas por quem tem as digitais finas. DIGITAIS FINAS! Que maldição!

Deu certo com a mão direita, mas não com a esquerda. Nada feito. Nova ficha. Nessa hora o supervisor me olha com compaixão e falando para si mesmo, declara solenemente:

- Não vamos desistir!

Eu sorri azul. Certamente minha cara já estava toda azul de tinta de carimbo.

Todos os 20 atendentes me olhavam com expressão de de assustados.

Será que sou a primeira geração de mutantes com digitais finais? Pensava baixo. Me frustei por ter nascido com essa mutação e não com aquela que transpõe paredes ou nos permite escutar o pensamento alheio.

Foco na tinta, foco no dedo, foco nos quadrados, ralaxamento de punho, esmagamento de falange, agora vai!

No dedo polegar da mão esquerda, no giro final do dedo, já estava preparada para uma nova tristeza pela minha mutação. Mas o supervisor pareceu satisfeito. Com o formulário seguro pelas duas mãos, como fazem os campeões com suas taças e medalhas, ele disse:

- Agora foi!

Eu suspirei e sorri. Ele foi até o controle de qualidade e voltou sorrindo. "Isso é um bom sinal" pensei. Mas uma próxima etapa me esperava. O lavabo que possibilitaria que a tinta saísse dos meus dedos. Sabão, bucha azul, água. Não haveria estrutura para fazer com que tantas camadas de tinta saíssem do meu dedo. Fiquei pensando em quão irônico seria se meus dedos mutantes tivessem a vantagem de se livrar da tinta sem grandes intervenções esfregatórias. Que nada. Ensaboa, esfrega, jorra água, esfrega, mais sabão, enfrega...

Não me lembro o quanto durou a tentativa de tirar a tinta, mas tinha percebido que seria quanto tempo eu desejasse. E quando achei que estava tempo demais tentando tirar a tinta, sem grandes avanços, decidi parar. Estava pronta para partir. Mas o processo não havia sido concluído.

Tinha que preencher a ficha, lembra? A ficha que havia preenchido 40 minutos antes e que teve que ser trocada. Foram 7 fichas até minha mutação permitir o desenho em formato natural de minhas digitais... que eram finas, mas também marcantes.

Completei o nível. Acabou. Consulto o relógio e 45 minutos se passaram desde que sentei para observar que levaria apenas 5 minutos ali. E lá, no lugar que sentei, estava o jovem pai com sua criança de colo. Esperava o RG. Haviam me dado o prazo de três dias para buscar o documento, mas ele solicitara emergência e seria atendido de imediato. Seria uma viagem?

Chego na calçada. Observo o céu azul e largo. Eram 10h. Avistei meu carro e pensei:

- Onde está a mãe dessa criança?

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